Implicações práticas de João 20:21

“Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio.”
(João 20:21)

Jesus Cristo chama a todos os seus discípulos para servir

Ainda sobre o texto: A que nos comissionou Jesus?, será útil considerar alguns prováveis princípios realísticos desse entendimento de “missão”. Os cristãos evangélicos estão agora se arrependendo do seu pietismo inicial cuja tendência era de nos manter isolados do mundo secular, e está aceitando que temos uma responsabilidade tanto social quanto evangelística. Mas o que isso significa na prática? Gostaria de explorar três áreas – vocacional, local e nacional.

Começo com a vocação, que para mim significa uma profissão cristã para a vida toda. Frequentemente, nos é dada a impressão de que se um jovem cristão está realmente interessado em servir a Cristo ele, indubitavelmente, será um missionário no estrangeiro, e que se ele não está tão interessado assim ele ficará em casa e se tornará um pastor, e que se lhe falta a dedicação para ser um pastor, ele sem dúvida servirá como um médico ou como um professor, enquanto que aqueles que terminam em assistência social ou na mídia ou (pior de tudo) na política não estão longe de apostatarem da fé!

Do meu ponto de vista, isso precisa urgentemente ganhar uma perspectiva mais verdadeira nessa matéria de vocação. Jesus Cristo chama a todos os seus discípulos para “ministrar”, isto é, para o “serviço”. Ele mesmo é o Servo por excelência, e chama-nos para sermos servos também. Uma coisa, então, é certa: se somos cristãos, precisamos gastar nossas vidas no serviço de Deus e dos homens (Mt 20:26-28; Lc 22:25-27; Jo 13:2-5,12-17).

 


Nem todos os membros têm a mesma função

 

“Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos.”
(1 Coríntios 12:14)

 

A única diferença entre nós repousa na natureza do serviço a que somos chamados para prestar. Alguns são de fato chamados para serem missionários, evangelistas ou pastores (Rm 12:3-8; 1 Co 12:28; Ef 4:11-14), e outros para as grandes profissões do direito, da educação, da medicina e das ciências sociais. Mas outros são chamados para o comércio, para a indústria, para a agropecuária, para a contabilidade e para o sistema bancário, para o governo local ou para o parlamento (1 Co 7:17-18,20; 1 Ts 4:10-12), e para a mídia, enquanto ainda há muitas jovens que encontram sua vocação no lar, na maternidade sem seguir uma carreira independente também (Pv 31:27-29; Tt 2:3-5).

Em todas essas esferas, e em muitas outras além dessas, é possível para os cristãos desempenharem sua profissão de maneira cristã, e não considerá-la nem como um mal necessário (necessário, isto é, para sobrevivência), nem mesmo como um lugar útil para evangelizar ou para ganhar dinheiro para evangelização, mas como vocação cristã, como o meio pelo qual Cristo chamou-os para gastar suas vidas no serviço dEle. Além disso, uma parte do chamado será tentar manter os padrões de justiça, de integridade, de honestidade, de dignidade humana e de compaixão de Cristo numa sociedade que não os aceita mais (Fp 2:14-15; 1 Pe 2:11-17).

 

O sal só salga fora do saleiro

 

“Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor?
(Marcos 9:50)

 

Quando qualquer comunidade se deteriora, a culpa deve ser atrelada a quem de direito: não à comunidade que está indo mal, mas à igreja que está falhando em sua responsabilidade, como “sal da terra”, de impedi-la de se deteriorar. E o sal será eficaz apenas se ele permear a sociedade, apenas se os cristãos entenderem novamente a ampla diversidade dos chamados divinos, e se muitos penetrarem profundamente na sociedade secular, a fim de nela servirem a Cristo (Mt 5:13; Mc 9:50).

Para esse fim, eu pessoalmente gostaria de ver as reuniões dos responsáveis cristãos por despertar vocações que visitam escolas, colégios e igrejas não recrutando apenas para o pastorado, mas apresentando diante dos jovens a emocionante variedade de oportunidades disponíveis hoje para servir a Cristo e aos seres humanos, seus companheiros.

Gostaria também de ver conferências vocacionais regulares, não apenas conferências missionárias cujo apelo principal é para se tornar um missionário transcultural, nem conferências ministeriais, as quais se concentram em ordenação pastoral, mas conferências de missão as quais apresentam a amplitude bíblica da missão de Deus, aplicando-a para o mundo de hoje, e desafiam os jovens a dar suas vidas, sem reservas, para o serviço em algum setor da missão cristã.

 


Nem todos os cristãos têm o mesmo chamado

 

“Porque muitos são chamados, mas poucos, escolhidos.
(Mateus 22:14)
.

 

Uma segunda aplicação diz respeito à igreja local. Aqui, mais uma vez nossa tendência tem sido a de ver a igreja como uma comunidade de adoração e de testemunho, com sua responsabilidade na região ou no distrito sendo largamente restrita ao testemunho evangelístico. Mas, se a igreja local é “enviada” à sua área como o Pai enviou o Filho ao mundo, sua missão de serviço é mais ampla que evangelização (Jo 17:18; 20:21).

Uma vez que a igreja local como um todo reconhece e aceita essa dimensão mais completa de sua responsabilidade, ela está preparada para uma verdade adicional. Mesmo que todos os cristãos sejam chamados em “termos gerais” para esses tipos de serviço, quais sejam, para testemunhar de Cristo e para atuar como o bom samaritano quando a oportunidade se apresentar, nem todos os cristãos são chamados ou para dar suas vidas ou para gastar todo o seu tempo em ambos (1 Co 12:29-31; 13:1-13).

É claramente impossível que todos façam todas as coisas que precisam ser feitas. Portanto, deve haver uma especialização, de acordo com os dons e com o chamado de Cristo para cada um. Alguns membros da igreja local, sem dúvida, receberam o dom para a evangelização e são chamados para evangelizar.

Mas, poderíamos agora dizer com igual convicção que o chamado e os dons de Cristo para outros apontam para a direção do trabalho social? Poderíamos nos liberar a nós mesmos da tarefa de curar os feridos (pois essa é a situação) por supor que todo cristão realmente sincero irá devotar todo o seu tempo na tarefa de ganhar almas? A doutrina bíblica do corpo de Cristo, com diferentes membros com dons para cumprir diferentes funções, deveria ser suficiente para dar-nos essa liberdade mais ampla? (1 Co 12:12-31).

 


Um sentido mais amplo de fazer missões

 

“O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
(Mateus 25:40)
.

 

Uma vez que esse princípio tem sido bem aceito, deveria ser possível para grupos de cristãos preocupados com isso, em cada congregação, unir-se a uma variedade de “grupos de estudo e ação”. Por exemplo, um poderia concentrar-se em visitação de casa-em-casa, outro em penetração evangelística de algum segmento particular ainda não alcançado (p. ex. um botei de estudante ou um clube de jovens, um colégio ou um café), outro em relações comunitárias entre imigrantes, outro em estabelecer uma associação de moradores para ajudar os que não têm moradia, outro, em visitar pessoas idosas ou doentes, ou ajudar deficientes físicos e mentais, enquanto outros poderiam trabalhar com questões político-sociais ou ético-sociais, tais como aborto (se houver uma clínica de aborto na área) ou relações trabalhistas (se a área for industrial) ou permissividade e censura (se lojas de pornografia ou cinemas estão infringindo a lei na vizinhança).

Deliberadamente usei a expressão “grupos de estudo e ação” porque nós cristãos temos uma tendência de dar nossa opinião a partir de uma posição de ignorância, e precisamos conhecer com precisão as complexidades de nosso tema antes de recomendar alguma ação responsável, seja evangelística ou social, ou ambas, para a igreja local.

Meu terceiro exemplo de tomar seriamente um entendimento mais amplo de missão leva-nos para a cena nacional. Mesmo que iniciativas devam ser tomadas em nível local, seria uma força considerável para os grupos de estudo e ação se algum tipo de rede nacional pudesse ser estabelecida. Atualmente, na Inglaterra, existem organizações nacionais para o trabalho jovem (p. ex., Pathfinders e CYFA), para missões estrangeiras (as várias sociedades missionárias), para desenvolvimento e ajuda de países estrangeiros (p. ex., TEAR Fund), ou para um ou dois outros propósitos, mas não para missão num sentido mais amplo.

O Conselho Evangélico da Igreja Anglicana e a Aliança Evangélica começaram a conversar sobre um “fórum de reflexões” que poderia procurar desenvolver uma estratégia nacional para a evangelização dos britânicos. Espero que isso crie raízes em contextos locais por fazerem a ligação entre “grupos de estudo e ação” evangelísticos uns com os outros. Talvez não devesse haver apenas uma preocupação evangelística, mas também por missão no sentido mais amplo (Mt 25:14-46).

 


Missão compreende a evangelização e ação social

 

“Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
(Marcos 10:45)
.

 

Penso que um ou dois grupos centrais de influência deveriam ser estabelecidos, a partir desse tipo de rede de grupos locais. Atualmente, ouvimos muito sobre “alienação”, não apenas no sentido clássico econômico desenvolvido por Marx, mas no sentido mais geral de incapacidade. Jimmy Reid, o líder marxista das docas, que se tornou reitor da Universidade de Glasgow em 1972, falou sobre isso durante seu discurso de posse: “Alienação é o grito dos homens que se sentem vítimas das forças econômicas cegas, fora de seu controle, a frustração de pessoas comuns excluídas do processo decisório.” E isso é verdade.

Muitas pessoas sentem-se escravos impotentes do “sistema”. Mas os cristãos não podem simplesmente aquiescer num sentimento de impotência. Concordo particularmente com Barbara Ward que, do meu ponto de vista, proferiu o discurso mais brilhante em Uppsala, dizendo: “Os cristãos atingem o espectro inteiro de nações ricas e, portanto, os cristãos formam um grupo de influência, ou podem formar um grupo de influência de incompreensível importância.” Ela estava falando especificamente sobre ajuda para o desenvolvimento.

Se podemos aceitar esse conceito mais amplo de missão, como serviço cristão no mundo, compreendendo tanto a evangelização quanto a ação social (Mt 25:14-46) – um conceito estabelecido a partir do modelo da missão de nosso Salvador no mundo – então os cristãos poderiam, sob a direção de Deus, ter um impacto muito maior sobre a sociedade, um impacto compatível com nossa força numérica e com as demandas radicais da comissão de Jesus Cristo (Mt 10:16-42; Jo 17:14-26; 20:21).

 


O texto acima é adaptação do livro de John Stott:
A missão cristã no mundo moderno”;
Editora Ultimato – págs.: 36-41.